Resenha do filme: Como uma estrela na terra
O filme em todo seu movimento caminha pela disparidade, pelo contraste
entre o egocentrismo e o altruísmo, entre os que não acreditam que o amor
pode salvar uma história e um professor de artes, que não tem medo de mostrar
que a felicidade é passaporte para o sucesso sim, a depender da visão que temos
de vencedores.
O
diferente é personagem principal da trama, não falo do garoto Ishaan que não
conseguia ler e escrever aos 9 anos, não falo do seu colega de classe que não
conseguia andar direito, nem tampouco das crianças com alguma deficiência que
eram ensinadas em uma escola especial.
Refiro-me ao professor Ram Shankar,
o qual, sai da sua zona de
conforto e olha sem pressa para o menino, que vê além do que é mostrado, não se
contenta com a margem e busca mares mais profundos. Presta a atenção no
não-dito, no que é apenas olhar que clama por ajuda, sem que a boca nada
consiga dizer. Escuta somente pelo prazer de aliviar a dor do outro, e por mais
que esse outro não fale tem a sensibilidade para enxergar o avesso.
Há
uma diferença entre deixar alguém ser e aprisionar uma alma. O que os pais de
Ishaan não entendiam era que ele queria voar, os muitos pássaros que ele
admirava, ao percorrer as ruas, mostravam ao garoto que o céu podia ser
alcançado. Mas como, se ele estava preso pelas próprias inaptidões? Ele falava
pouco, mal dizia se queria bolo ou torrada no café da manhã, também não
conseguia dizer o que o incapacitava. Seu pai não o compreendia, sua mãe o
aceitava com alguma compaixão e por vezes, tentou ensinar-lhe o que de nenhuma
forma aprendeu. Cometia os mesmos erros e isso parecia uma afronta. Quem nunca
se deparou com alguém que por mais que tentássemos ajudar ele sempre voltava e
pedia perdão pelo mesmo erro? Que tipo de revolta nos causa então, quando esse
alguém nem sabe pedir desculpas pelo que cometeu, se é que se vê como inconveniente?
Para
os pais do garoto seus erros eram inadmissíveis, sua imaginação ignorada e sua
criatividade deixada de lado, tudo isso em prol de um futuro promissor. Ou vai
me dizer que para competir nesse mundo de gente perfeita também não temos que
ser completos em tudo? Como o irmão mais velho de Ishaan, que era o exemplo de
aluno disciplinado.
Se
nos cômodos aconchegantes de seu lar ele não podia esperar que seu silêncio
fosse compreendido, que dirá nos muros da escola que para ele eram mais que uma
prisão?! Ali as palavras eram pré-requisitos para permanecer e o que não fosse
leitura e escrita impecáveis, era jogado no lixo da ignorância.
Os freqüentes castigos nos corredores da
instituição, que prometeu dar-lhe a disciplina almejada por todos, mostravam a
deficiência do modelo de “ensino
bancário”, termo usado por Paulo Freire para designar o padrão de educação que
tenta a qualquer custo transferir para o aluno todo o conhecimento do professor,
de forma totalmente linear e autoritária. Tudo que a escola aspirava de seus
alunos era o que Ishaan não podia condescender: aluno que se adéqüe aos moldes
sociais, robôs em miniatura, crianças aprisionadas pela regra e pelo
conformismo. Palmatória na mão e nos olhos o medo de errar. Suas dificuldades
de aprender não podiam ter outra causa senão sua desobediência e seu
desconforto pelas cadeiras da sala de aula. Repetiu a 3ª série e foi negada sua
continuação na escola, foi de certo modo, expulso de sua própria casa.
Qualquer
observador atento veria em seus olhos o brilho que expressava ao caminhar pelas
ruas da cidade, tão conturbada. O aprendizado que ele, muito mais que na
escola, conseguia assimilar. Em tudo ele via algo que o encantava. Tinha
feições de gente que não naturalizava a visão das coisas. A sua alegria assemelhava-se
ao regozijo de um bebê, se percebesse, à hora do parto, seu nascimento, tudo
lhe era novo e peculiar.
Somente
depois de desistir de aprender, de abdicar até mesmo do que lhe era mais caro: desenhar e pintar, é que
pôde renascer como fênix, das cinzas da sua suposta incapacidade de ser
“normal”. Após constatar que não nascera para as letras e que por mais que
tentasse, não conseguiria ser um aluno aplicado (aos moldes da autoritária
escola), é que pôde ser olhado de um jeito novo. Alguém prestou a atenção na
sua melancolia. O educador Ram Shankar, trouxe arte para uma vida que estava
imersa no preto e branco.
Lembro
do que pensei quando vi a cena de Ram vestido de palhaço, dançando na sala de
aula, da vivacidade que vi nos olhos dos alunos, pensei que só poderia ser um
sonho. Não era. E isso foi constatado, quando passada a música que os embalava
e a dança que me envolvia, o professor solicitou que os alunos desenhassem o
que lhes surgisse na mente. Na mesa de Ishaan o vazio que há tantos anos estava
presente nos seus dias.
“Conhecereis
a verdade e a verdade vos libertará”, foi assim para Ishaan, somente depois de
saber a causa de sua inadaptação à leitura e escrita é que pôde se emancipar das amarras invisíveis
que o impediam de voar alto. Ir ao encontro do outro quando ele está
incapacitado de ajudar-se sozinho, até mesmo quando ele nem sabe do que ocorre
dentro e fora de si, foi isso que Ram fez, foi ao encontro dos pais do garoto e
contou-lhes a “sentença de morte”, seu filho tinha indícios de dislexia. “Como
assim meu filho é anormal?”. A partir do choque e da freqüente pergunta: “Por
que nosso filho?”. É que a aceitação vai sendo delineada aos poucos.
Segundo a International Dyslexia Association -
Comitê de Abril / 1994 apud Mico, (2004)
a dislexia:
É um distúrbio de aprendizagem, sendo o
mesmo, específico da linguagem, caracterizado pela dificuldade em decodificar palavras
simples, mostrando uma insuficiência no processo fonológico.
A criança sozinha não é responsável pelo seu “insucesso” escolar, pois
a aprendizagem caracteriza-se por uma relação bilateral, tanto da pessoa que
ensina, como da que aprende. (Ercolini, 2008). É preciso saber as causas do não
aprendizado do aluno, no entanto, mais do que um diagnóstico o aluno precisa de
acolhimento, de afeição. A análise por si só não transforma a realidade, é
preciso, segundo Ercolini, usar estratégias para melhorar essa relação de
ensino-aprendizagem independente de um diagnóstico de dislexia.
Foi isso que Ram fez, usou estratégias de aprendizado para o garoto e
não se prendeu ao que ele não podia, mas potencializou as suas capacidades. O
talento de Ishaan era evidente para a pintura e o professor soube usar de forma
muito criativa a sua habilidade propondo
um concurso de pintura, isso nos remete à teoria das inteligências múltiplas,
na qual a inteligência pode ser expressa de outras formas, que não a
convencional. Todo o tempo o professor de artes estava ao seu lado, disponível
para adequar o ensino ao garoto, o que falta em muitas de nossas escolas é essa
disponibilidade para incluir, para se doar e assumir o compromisso de educar
com qualidade independente das dificuldades apresentadas pelo aluno.
O olhar de Ishaan em alguns momentos era de resignação e em outros de
revolta, ele não entendia as causas do seu não-aprendizado. Com certeza
sentia-se culpado por ser “tão burro”. Não tinha alegria que é própria da
infância, tinha apenas um choro contido e uma feição de derrotado. Sua auto-estima
estava baixa, pois era vítima de risos, piadas maldosas e castigos constantes.
Não tinha forças nem mesmo para se arrumar sozinho, não tinha energia para
levantar-se para ir à escola, pois sabia que lá era seu calvário. Somente após
entender o que se passava com ele, a partir de uma historinha contada pelo
professor em que grandes pensadores de nossa história foram citados como
dislexos, é que um sorriso foi visto em seu rostinho de criança e uma certeza
em seu coração amargurado: eu posso ter esperanças!
É isso que Gonçalves nos esclarece, ao dizer que somente após saber o
real significado do que acontece consigo, é que a criança sente um grande
alívio, pois não se vê mais como “culpada” por não aprender. É como se tirasse
o mundo das costas. A avaliação (neuropsicológica, psicopedagógica e
fonoaudiológica) também é importante e auxiliará no desenvolvimento da criança,
na medida em que proporcionará um maior esclarecimento das estratégias a serem
usadas com a criança, para que ela possa aprender da forma que lhe é
possível. Igualmente o acompanhamento se
faz muito importante para que a criança, não apenas os pais, possam entender e
perceber-se como agente do seu aprendizado, ter uma melhor percepção de suas
competências, tendo em vista a melhora na
sua auto-estima, bem como saber organizar estratégias de estudo, resolver
problemas e enfrentar dificuldades referentes ao aprendizado, isso, através dos
mais diferentes recursos. O apoio da família é fundamental, e somente quando os
pais de Ishaan souberam aceitar e entender as capacidades diferenciadas de seu
filho é que algo novo pôde ser construído, um novo relacionamento familiar
baseado na confiança mútua e no amor, que apesar de estar presente em cada um
deles, não manifestava-se plenamente pela não compreensão da realidade que os
envolvia.
O enfrentamento dessa questão pelo psicólogo, em uma instituição de
ensino, está além de seu conhecimento teórico, perpassa antes de tudo pela sua
sensibilidade, exige uma empatia para perceber o sofrimento do outro, uma
escuta apurada e um olhar diferenciado para enxergar as potencialidades de cada
um e não somente suas limitações.
Como citou Gonçalves (2012):
“A pipoca é um milho mirrado,
subdesenvolvido que, para alguém que não conheça, parecerá que não pode
competir com os grãos normais, graúdos. No entanto, aqueles grãos duros,
quebra-dentes, após passarem pelo poder do fogo, transformam-se em pipoca
macia”.
(Rubem
Alves- O amor que acende a Lua)
É um esforço constante para ver o milho tão mirrado transformar-se em
pipoca, ver o que não tinha beleza, transformar-se em pipoca macia. Ishaan era
esse milho que precisava apenas de alguém que acreditasse que ele podia ser uma
pipoca graúda.
O profissional de psicologia, precisa ser esse agente de mudanças,
alguém que irá escutar os pais, alunos, professores para desenvolver
estratégias que realmente se adéqüem as necessidades do estudante, assim através do apoio incondicional da escola
e da família e de outros profissionais ( fonoaudiólogos, psicopedagogos,
educadores, médicos, etc) é que se poderá oferecer a esse educando condições
para ultrapassar os obstáculos apresentados em seu percurso escolar. É
importante também favorecer o autoconhecimento desse aluno, pois somente a
partir disso ele aprenderá melhor e poderá ser melhor ajudado.
Em suma, o enfrentamento de tal situação no contexto escolar não pode
partir de ações isoladas do psicólogo, mas precisa pautar-se em um conjunto de
medidas que partam de diferentes profissionais. E o professor, que acreditou
até o fim na capacidade do garoto, pode ser um exemplo a ser seguido, pelo
profissional de psicologia, e não só por ele, mas por todos os envolvidos nessa
conjuntura. É preciso acreditar no próprio trabalho, acreditar na criança e
ajudá-la a acreditar em si mesma e isso não é simples, pois o diferente (nadar
contra a correnteza) nem sempre é compreendido, é mais atraente acomodar-se. Muitas
vezes as mudanças não são bem-vindas, assim fica fácil engrossar a fila dos que
julgam, difícil é juntar-se à ala dos que são julgados.
"Eu sei que não terei
sucesso. Tentar forçar os Resultados somente aumentaria
a confusão. Não será melhor desistir e parar de me
esforçar? Mas, se eu não me esforçar, quem o fará?"